Canudos
Em outubro de 1990 o jornalista chileno, Tebni Pino Saavedra, exilado no Brasil, viajou até Bendengó (BA) para cobrir as festividades de Canudos e publicou esta reportagem no jornal "Cidade" de Rio Claro que agora reproduzimos aqui.
Bendegó, 40 graus à sombra. Última parada a caminho de Canudos, após mais de duas horas de Euclides da Cunha e oito de Salvador. As nuvens cinzentas em momento algum teriam a ousadia de despejar a chuva, como cumprindo à risca a tradição da seca que há anos assola a região. Em meio a bodes e jegues, passo lento atravessando as ruas empoeiradas, o povo nordestino observa curioso a caravana de romeiros, artistas, intelectuais e padres que, tal como acontece há sete anos, se reúne nas margens do açude de Cocorobó, muda testemunha de uma tragédia que consumiu 25 mil almas no maior massacre coletivo contra a comunidade de Belo Monte, na cidade de Canudos, hoje coberta pelas águas.
À frente do grupo de visitantes, a figura miúda do Padre Enoque de Oliveira se destaca pela vivacidade para organizar, ensaiar cânticos, conceder entrevistas à imprensa estrangeira e acertar os últimos detalhes de uma jornada de comemorações que a cada ano atrai mais turistas, curiosos e pessoas interessadas em conhecer de perto a história de Antonio Conselheiro, contada pelos filhos dos protagonistas da saga que comoveu o Brasil dos primeiros anos da República.
Esta vez, porém, uma única tradição foi rompida. A celebração das comemorações nos dias 13 e 14 de outubro e não no dia 5, em virtude das eleições, impedindo com a mudança o comparecimento de figuras já tradicionais na festa, como são os grandes nomes da música nordestina: Xangai, Elomar, Vital Faria, Geraldo Azevedo, Gilberto Gil e outros que, entretanto, enviaram suas saudações e pedidos de desculpa. Não menos famosos, contudo, foram até Canudos prestar sua homenagem: Amelinha, Gereba, Pingo de Fortaleza, Valmir Rocha, Tato Lemos, Paulinho Jequié, Jorge Papapá, Alberto e Joilson, Marcelo, “cantadores” comprometidos com o Movimento Histórico de Canudos, dispostos a enfrentar poeira e “muriçocas”, calor e sede e, principalmente, compartilhar do humor debochado e alegre do já famoso “Bujão”, uma espécie de rei bufo, cuja alegria contagiante serviu de oxigênio aos desacostumados pulmões forasteiros quando o calor parecia asfixiar e a boa cerveja começava a se esgotar.
“Resgatar a memória de Antonio Conselheiro e a história de Canudos, para nós, é muito mais um compromisso de honra, um momento de reflexão na longa história de lutas do povo do nordeste”, diz o padre Enoque, diante o qual até a cúpula do clero se levanta para protestar. Acontece que a Igreja Popular, da que fazem parte a maioria dos participantes da cerimônia – incluindo o sacerdote – não é bem vista pela superestrutura da igreja na medida em que sua proposta visa, principalmente, questionar o papel desta na questão da luta pela terra, não apenas há cem anos, quando de Canudos, como na atualidade.
Ameaçado de morte, impedido de andar sozinho em alguns lugares da região e em Euclides da Cunha, onde mora, o Padre Enoque não aceita, porém, recuar em suas posições. “Não dependo do clero para fazer o que preciso – frisa. A ditadura militar não as fez recuar e não vejo por que deveria aceitar uma imposição de alguém que anda com o evangelho na mão, seja ele quem for”.
As acusações contra o sacerdote, contudo, não param por aí. Há os que se atrevem a criticá-lo por fanatismo religioso, como fizeram um século antes com Antonio Conselheiro. “Tem gente que argumenta o fato de eu ser cearense como Conselheiro”, alega Enoque, tentando com isso envolve-lo numa suposta imitação que iria além da simples participação na Igreja Popular. Impedido de celebrar a eucaristia, o número de seguidores devota por ela uma fé que não é cega.
Nem poderia ser. “todo mundo aqui na roça, diz dona Januária de Souza, era analfabete, aí veio Padre Enoque e ensinou e tudo aprendeu”. Aprendeu, por exemplo, que os grileiros, causantes da perda das terras de sua família, jamais vão gostar do padre, pois é na luta pelo reconhecimento dos direitos dos camponeses onde tem se forjado a maioria dos inimigos da ação pastoral do sacerdote.
O SERTÃO DE CANUDOS
Se o sábado foi quente na parada obrigatória de Bendegó, o domingo não fez por menos. Com a mesma intensidade do dia anterior, nem por isso o calor desestimula os romeiros logo pela manhã. O meio de transporte mais usado na região, o chamado “caminhãozinho”, bujão de gás como combustível habitual por essas latitudes, tábuas atravessadas na estrutura traseira como fossem bancos, enfrenta pouco mais de 20 minutos de poeira e, aos pulos, se adentra por uma trilha que alguém se atreveu um dia a chamar de caminho.
Em meio à caatinga e à vegetação rasteira do sertão, a paisagem parece querer enganar a visão do forasteiro. Os primeiros sinais do verde às margens do açude que sepultou Canudos e um monumento a Antonio Conselheiro mandado construir pelas autoridades, aparecem como sinal inequívoco de nos aproximarmos a um século de história e a cobrar vida na figura dos anciãos da região e nas marcas ainda presentes da guerra.
O antigo Museu Histórico de Canudos, durante um tempo zelador das relíquias da guerra, serve hoje de moradia de ratos e lagartos, símbolo do abandono das autoridades. A estátua de Conselheiro, uma “afronta à verdadeira história do massacre”, nas palavras dos moradores da região, reina solitária no centro do que deveria ser uma praça, transformada pelo tempo em deserto apenas acordado pelas visitas dos curiosos e romeiros, durante os dias de peregrinação.
Próximo dali, o açude esconde sob as águas a torre da igreja construída por Conselheiro, assim como o suporte de cimento que prendeu a famosa “matadeira”, uma metralhadora usada pelas tropas do exército para dizimar a população da comunidade de Belo Monte que resistiu ao ataque.
Barracas de comida e artesanato em volta do cenário das comemorações quebram a monotonia da geografia desértica, apenas avistada de longe pela cruz de madeira com reproduções fotográficas de Antonio Olavo, fotógrafo do movimento, contando em imagens a história dos últimos anos.
Começa então a longa peregrinação de romeiros numa caravana que desce desde o alto até as margens das águas onde será realizado o ofertório dos alimentos celebrado pelo Padre Enoque.
Trata-se de uma verdadeira “via crucis”, com encenações do cotidiano dos moradores da região. Nas primeiras paradas, homens mulheres e crianças teatralizam uma feira onde são questionados os fatos políticos e econômicos do Brasil dos anos noventa. Discute-se salários, posse da terra, educação e se revisa a atuação dos políticos que, a cada eleição, aparecem nas cidades vendendo velhas fórmulas para acabar com a seca, a fome, enfim, com a miséria.
Do mesmo modo, com chapéu de couro na cabeça, característica fundamental do sertão, um grupo de homens armados de paus e ferramentas de trabalho forçam a passagem pelos arames farpados que representam a grilagem de suas terras. É o fim da angústia de se sentirem presos à pobreza e uma renovação dos princípios que levaram os retirantes de Antonio Conselheiro a se assentarem nas terras devolutas e secas de Canudos onde criaram e deram vida à sua comunidade.
As eleições também mereceram um momento de reflexão e denúncia. De acordo com a encenação dos romeiros, a contagem de votos se tornou, na região, nada mais do que o cumprimento de um ritual burocrático, pois, de acordo com as denúncias da representação teatral, na maioria das mesas receptoras do interior os votos dos representantes dos senhores do sertão, dos coronéis, já estão colocados muito antes destas chegarem aos locais de votação.
“Resgatar a memória de Conselheiro e para que Canudos não aconteça novamente”, argumenta mais uma vez o Padre Enoque e os romeiros nas margens do Cocorobó, na hora do ofertório dos alimentos. É chegado o momento de oferecer o pouco que a terra devolve em alimentos: farofa, carne de bode, vinho e algumas frutas que o sertão produz. É a Igreja Popular, contra a qual se levantam não apenas os senhores do sertão, como uma boa parcela da própria Igreja Católica.
“Estou impedido de celebrar a eucaristia”, reclama o sacerdote, mas isso “não me impede de continuar meu trabalho pastoral”. Perto dali, no povoado de Monte Santo e mesmo em Bendegó (chamado também de Bendengó), até as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) se levantam para protestar contra esta nova forma de entender a mensagem pastoral de Enoque.
A cantoria do sábado em Bendegó se repete novamente no final da festa, só que desta vez de frente ao açude, “como oferta dos artistas à memória de Conselheiro e às vítimas de Canudos”, explicam os “cantadores” que, em sua totalidade, viajam dos mais longínquos recantos da Bahia sem cobrar absolutamente um cruzeiro aos organizadores. “É um compromisso com a História, com Conselheiros, com as vítimas e inocentes que sofreram na guerra”, ressalta Valmir Rocha, no que é apoiado por Jorge Papapá quando afirma que esta festa reflete também “a necessidade de se refazer a história de Zumbi dos Palmares e a de milhares de heróis anônimos de nossa terra”.
Enquanto os comerciantes desfazem as barracas e os romeiros montam nos “paus de arara”, de volta às suas cidades, o Padre Enoque e os organizadores do Movimento estão pensando já na próxima celebração que “sem dúvida atrairá mais turistas e interessados em conhecer nosso trabalho”, apesar dos 45 graus à sombra e os jegues e bodes retomando também o caminho do sertão a passo lento, como respeitando, assim como as nuvens, o silêncio da seca.
BOX: CANUDOS, OS SERTÕES
“Canudos não se rendeu”, escreveu Euclides da Cunha e isso fica ainda mais claro no romance de Mário Vargas Llosa na “Guerra do fim do mundo”. Duas visões para um mesmo fato histórico. Um, o primeiro, presente na hora dos acontecimentos. O outro, produto da imaginação de um dos maiores escritores vivos da América Latina que, embora tenha criado uma boa parte de ficção, não esquece por um momento só estar relatando uma epopeia real, presente ainda na memória dos descendentes da maior guerra camponesa da história do Brasil.
Atacado por Monarquistas e Republicanos, o certo é que Antonio Conselheiro não defendia nem um nem outro sistema de governo. O problema, à época da guerra (1896/1897) era a grilagem, o trabalho semiescravo, a seca, a miséria (até parece que esta história foi contada ontem). Talvez pensando nesses e outros problemas foi que Antonio Vicente Mendes Maciel, o “Conselheiro”, nascido no sertão do Ceará, na cidade de Quixeramobim, lá pelos idos de 1829, decidiu abandonar a prática da advocacia e partir para a pregação religiosa pelo sertão nordestino.
A peregrinação durou aproximadamente 20 anos e por onde passava, Conselheiro deixava sua marca de fé, marcando o compromisso com o povo do Nordeste. Construiu barragens, açudes, capelas e cemitérios. As marcas da sua passagem estão ainda registradas nos lugares por onde andou, porém, a maior de todas, Canudos, ficou para sempre submergida pelas águas do açude de Cocorobó quando foi definitivamente sepultada a última testemunha da guerra que durou um ano até o total extermínio da população da comunidade de Belo Monte.
Perseguido pelas autoridades políticas da época que o consideravam perigoso e pela igreja por fanático e herege, Conselheiro conseguiu se estabelecer junto a 25 mil retirantes que o seguiam em sua longa caminhada nas margens do rio Vasa-Barris. Ali produziam a terra, repartiam os frutos dela obtidos de maneira equitativa e deram início a um verdadeiro processo de reforma agrária distribuindo a cada núcleo familiar o que se considerava estar de acordo com as suas necessidades.
A chama do conflito tinha, então, sido acesa. O trabalho comunitário e o uso coletivo da terra posto em prática pelos trabalhadores foi considerado um ato de subversão à ordem dos coronéis, pois o exemplo poderia se arrastar pelo sertão acabando com a mão de obra escrava. Dá-se início então a uma grande campanha para chamar a atenção das autoridades civis e religiosas. Acusavam-no de ser contra a jovem República, querendo restabelecer a Monarquia, de fazer subversão e agitação no meio dos camponeses. Louco, subversivo, fanático. Porém, era evidente que o que se tentava esconder, de fato, era a questão da terra concentrada nas mãos de uma minoria privilegiada, causante da miséria e o atraso planejado do Nordeste.
Nesse clima de acusações e exigências, veio a primeira expedição militar do Estado, por ordens do então governador da Bahia, Luiz Viana. Foram destruídas plantações e incendiadas várias casas da comunidade, porém, foram rechaçados pelos camponeses no povoado de Uauá. Seriam necessários, contudo, mais 4 ataques até acabar com os últimos vestígios de Canudos. As forças do exército dizimaram todos os seus habitantes, degolando os homens, incendiando e destruindo tudo, para não deixar sequer uma lembrança da comunidade.
Canudos, que na época era a segunda maior cidade do Estado da Bahia, virou cinzas. E a história oficial, até pouco tempo única palavra autorizada a narrar os fatos, apesar dos Euclides e Vargas Llosas, começa a ser contestada. Em 15 de outubro de 1983, membros da Paróquia de Monte Santo e um grupo de pessoas de Euclides da Cunha e Uauá decidem criar o Novo Movimento Histórico de Canudos para mostrar ao mundo, de acordo com suas palavras, que “o sangue derramado de Canudos virou semente de libertação”. A partir dessa data, todo dia 5 de outubro de cada ano a comunidade celebra uma festa nas margens do açude de Cocorobó, onde os descendentes das vítimas e interessados no resgate histórico de Canudos se reúnem durante dois dias para debater, discutir e prestar sua homenagem a Conselheiro e, principalmente, segundo os seus integrantes, “à verdadeira história de Canudos”.